sábado, 3 de fevereiro de 2018

PRECARIEDADE DA COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL

                              Entre o que eu penso,
                              o que eu quero dizer,
                                   o que digo e
                                o que você ouve,
                           o que você quer ouvir e
                     o que você acha que entendeu
                                  há um abismo.

                           Alejandro Jodorowsky

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Um visitante inoportuno (Osvando Faria)

Moramos em cidades diferentes e há muito tempo não nos víamos. Naquela noite fui visitá-la pela primeira vez em sua nova casa, recém construída. É uma casa encantadora! A harmoniosa combinação dos ambientes  e o gosto refinado da decoração tornavam o ambiente vivo e aconchegante. Ouvia com aguçado interesse os detalhes da construção, desde o projeto há muito tempo idealizado até as minúcias acerca do material utilizado e do mobiliário. Os objetos pessoais, as peças em madeira, o tijolo aparente o paisagismo exuberante, as flores frescas nos vasos, davam um toque pessoal e revelavam a criatividade e o refinamento da moradora. Mas sobretudo eu desfrutava com deleite da sua sempre agradável companhia. Temos uma grande afinidade e nossa conversa parece ser interminável. Eu queria sorver com intensidade cada momento do nosso  encontro já que voltaria para São Paulo na manhã seguinte, sem previsão de quando nos veríamos novamente. Como desejei naquela noite, ter o poder de parar o relógio! Estava vivendo um momento feliz que não queria que acabasse.

Mas o tempo é inexorável. A noite avançava e a fome se fez presente. Resolvemos então encomendar uma massa em um restaurante tradicional da cidade, que comeríamos acompanhada de um Chardonnay  que já havíamos aberto. Bebíamos, conversávamos e esperávamos...Quando o toque do interfone avisou que o pedido chegara, senti minha boca salivar antevendo o prazer de desfrutar de uma boa comida na melhor companhia. Mas, infelizmente, o acaso também se fez presente e como nas estórias de Guimarães Rosa, desencadeou o anti-clímax. Para nossa surpresa, o entregador da comida não era um motoboy, senão ninguém menos que o proprietário do restaurante, velho conhecido da minha anfitriã. A partir desse momento, começou o meu martírio. Aconteceu que o desavisado parecia não ter mais nada que fazer naquela noite, e claro, interessou-se pela casa, o que ensejou uma visita guiada com explicação pormenorizada dos ambientes. A conversa se prolongava, a comida esfriava e minha aflição aumentava. Sentia-me usurpado em meu desejo de privacidade. O ciúme tomava conta do meu peito. Aquele encontro era só nosso e eu não admitia dividi-lo com ninguém. Os minutos voavam, roubando-nos preciosos  momentos tão avidamente por mim desejados.
Suspirei aliviado quando o infeliz dirigiu-se para a porta de saída, mas para meu desespero, antes de entrar no carro, resolveu discorrer demoradamente sobre como estava reorganizando sua vida familiar após a morte da esposa. Minha agonia então transformou-se em ódio daquele sujeito inoportuno que estava roubando a atenção que até então só a mim era destinada. Egoísmo da minha parte? Pode ser, mas naquele momento permitia-me este sentimento e dele não me arrependo.
Quando finalmente ele se foi, a raiva e a frustração ficaram comigo. Ele havia quebrado a magia do momento e eu não consegui voltar ao estado de encantamento anterior. Já era tarde e logo eu teria que me despedir também, sem saber quando seria possível um novo encontro.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Carta ao Gael


Carta do Vovô Óz para o Gael

Gael, na cerimônia de casamento dos seus pais, li um texto que fala dos nossos sentimentos quando  percebemos que os filhos cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto, e que o jeito era esperar que viessem os netos, pois o neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos, e que não pode morrer conosco. Então, fica fácil para você imaginar o tamanho da minha alegria com a sua chegada.

Bem vindo, Gael. O mundo é legal, desde que a gente saiba lidar com suas contradições. Tem muita beleza e miséria, dias de sol e temporal, tem  gente que nos diz não, mas faz isso para o nosso bem, e tem gente que nos diz sim, mas faz isso mais por preguiça do que por amor.

Tomara que você goste de futebol, porque a esta altura você já sabe em que família  foi se meter. Uma ala é corintiana  fanática e a outra é palmeirense doente, não queria estar no seu lugar. Mas sempre é possível escapar para o tênis, que também é um esporte fascinante. Aliás, acaba de ser inaugurada uma quadra novinha no seu condomínio, que espero um dia desfrutarmos juntos.

Desde que você saiu da barriga, está escutando votos de saúde e felicidade (mesmo que, por enquanto, tudo não passe de um barulho incompreensível e que você já esteja com saudade do silêncio uterino). Pois saiba que são votos clichês, mas os clichês são sábios: saúde e felicidade é tudo o que você precisa nessa vida. Só que tem que dar uma mãozinha. Então, pratique esportes, se alimente bem e não fume: a saúde já estará 50% garantida, o resto é sorte. Quanto à felicidade, o jeito é tentar fazer boas escolhas. Como fazê-las? Ninguém sabe ao certo, mas ser íntegro e não se deixar levar por vaidades e preconceitos promove uma certa paz de espírito. Ser feliz não é muito difícil, basta não ficar obcecado com esse assunto e tratar de viver. Quem pensa demais, não vive.

Você vai ser louco, apaixonado, babão por sua mãe. É natural. Mas não deixe que suas namoradas percebam.

Cada vez mais o dinheiro controla os desejos. É importante ganhá-lo, porque sem independência não somos donos de nós mesmos, mas para ganhá-lo você não precisa perder nada: nem escrúpulos, nem caráter, ou você estará se deixando comprar. Não se deixe controlar por ele. Pelo dinheiro, digo, porque pelos desejos você não só pode como deve se render. Mas não seja um heartbreaker profissional, a mulher da sua vida pode lhe escapar das mãos.

Ia esquecendo: estude inglês.

Uma vida sem arte é uma vida árida, sem transcendência, um convite à mediocridade. Então desfrute de muita música e cinema, e quando suas garotas tentarem lhe arrastar para um teatro, vá sem reclamar, há 30% de chance de você gostar. Importante: se alguém disser que ler é chato, mande se entender comigo.

Tédio é para os sem inspiração. O mundo oferece estradas, passeatas, eleições, aeroportos, ondas, montanhas, campeonatos, vestibulares, desafios, churrascos, festivais, feriadões, roubadas, gargalhadas, madrugadas e declarações de amor. É assim mesmo, tudo misturado e barulhento. A saudade do silêncio uterino vai lhe surpreender muitas outras vezes. Busque esse silêncio dentro de você.

Então é isso, Gael, seja corajoso e grato: nascer é um privilégio concedido a poucos, ainda que sejamos bilhões. Não desperdice a chance e esteja consciente de uma coisa: que sem alegria não vale a pena.

(*) Adaptado do texto "Carta ao Rafael", de Martha Medeiros


quinta-feira, 3 de julho de 2014

Todas as relações são abertas

"Bond of Union" | M.C. Escher
Há tempos ouço debates sobre qual será o modelo de relação mais comum no futuro. Entre defensores da monogamia e da poligamia, costumo brincar que fechada, aberta e de carne são esfihas; relação é outra coisa. Já que o que realmente nos une ou separa de uma pessoa não é um acordo pré-fixado, nem uma instituição, nem um papel, nem um título, na prática todas a relações são abertas.
A abertura, mesmo em uma relação monogâmica convencional, é uma qualidade inalienável, irrevogável. Não há tranca que segure os deslocamentos da vida.
O que nos mantém ligados uns aos outros é a conexão estabelecida, que independe, inclusive, de estar ou não fisicamente com a pessoa. Podemos estar disponíveis para outros estando com um parceiro, como podemos estar menos disponíveis a outros apenas pela ligação com alguém com quem sequer namoramos. Podemos estar disponíveis mas não chegarmos às vias de fato, como podemos chegar às vias de fato estando com outro parceiro sem que isso afete essa conexão afetiva. As variações são tantas que podemos dizer que vivemos em constante suruba e monogamia ao mesmo tempo, por liberdade original, e mudar o rumo e a forma de se relacionar a qualquer momento, mesmo que tenhamos feitos acordos, contratos, promessas.
Alain de Botton, no brilhante livro Religião para ateus, diz que os ateus perdem muito tempo querendo provar a não-existência de Deus e se esquecem do que fazer diante da não-existência de Deus. Então investem muita energia contra aqueles que praticam seus rituais religiosos perdendo a grande oportunidade de ter algumas experiências para além dos dogmas. Botton mostra como as religiões se apropriam de rituais pagãos. O Natal, por exemplo: o que realmente faz as pessoas aderirem não é o significado religioso em si, mas a experiência de distribuir presentes, compartilhar uma ceia, se reunir para celebrar. O verdadeiro sentido do Natal é a prática do seu significado, não o contrário. O mesmo acontece a qualquer tipo de relação.
O valor de um relacionamento é dado pelo que ela efetivamente é em experiência, sendo inútil achar que um rótulo vai salvaguardar ou dar origem a alguma coisa. Na hora H, tudo isso é absolutamente ineficiente, exatamente como pensar em fazer dieta e colocar um aviso na porta da geladeira pra lembrar, mas assaltar a geladeira um pouco a cada dia. Fazemos efetivamente dieta quando não precisamos mais lembrar que estamos em dieta, paramos de fumar quando já não lembramos bem porque fumávamos.
O rótulo só faz sentido quando a relação vivida o dispensa – interessante paradoxo.
O que ocorre a maior parte do tempo é uma burocratização dos relacionamentos, não apenas em formato mas principalmente em conduta. Precisamos de uma definição para nos certificarmos de que tudo vai dar certo, não podemos deixar margem para erro e reclamações posteriores. Montamos um projeto e tratamos o outro como um de seus objetos. Em vez desfrutar a relação, apenas mantemos uma relação e posicionamos o outro como uma meta de um projeto.
A realidade é bem mais caricata
Fazemos esforços para evitar o que possa ser desagradável, nos preocupamos demais em acertar e muito pouco em vivenciar com nossos próprios olhos, tato, escuta, paladar e corpo, desperdiçando a parte mais saborosa das relações, que é explorá-las, desbravá-las. E é justamente essa conduta que atinge o ponto vital das relações, fazendo com que fiquem apáticas, anêmicas, sem fluidez.
Não percebemos que o comprometimento vem antes da promessa, que o amor vem antes do pedido de casamento, que a conexão vem antes da razão. Na ânsia de controlar, colocamos o carro na frente dos bois e definimos formatos de relações para garantir segurança, enquanto ironicamente evitamos nos expor ao contato pra valer, sem garantias. Abertos.
Em minha própria experiência constato cada vez mais que os verdadeiros vínculos são mantidos por pura naturalidade e relaxamento, quando a promessa já está acontecendo e não precisamos oficializá-la, quando o sexo é praticado e não investigado, quando a disposição existe mesmo diante de condições externas desfavoráveis.
“There’s nothing to decide. There’s just walking forward.”
Miranda July
Então a “fidelidade” pode ser estar na relação 100% com tudo que faz parte dela, independentemente de exclusividade, pois a conexão estabelecida tem um sentido mais amplo e profundo. A “infidelidade” é justamente o oposto: não é um caso extraconjugal ou não, é uma manobra do desejo, uma artificialidade, é oferecer seus pedaços, é mentir descaradamente, para você mesmo.
Os enganos que mascaramos são como fingir um orgasmo: nós mesmos recebemos de volta aquilo que nos insatisfaz enquanto tentamos fazer o outro acreditar que nos contenta.
Se olharmos as relações como parcerias, em que estamos compartilhando com o outro nosso caminho, espaço, ideias, sentimentos e momentos, não como burocracia, onde temos de cumprir um roteiro pré-estabelecido, podemos vivê-las com mais leveza. Precisamos entender que o outro anda pelo mesmo espaço de liberdade que temos sozinhos, e que juntos esses espaços deveriam se ampliar ainda mais e não se restringir para que haja uma manutenção e durabilidade que atenda nossas pequenas expectativas de controle. Quanto mais relaxados estivermos diante das surpresas e aventuras do terreno de se relacionar com alguém, mais abertos estaremos ao que vier pela frente.
Da próxima vez em que tiver dúvidas sobre qual tipo de relação está vivendo, parta do seguinte ponto: todas.
Alessandra Marcuzzi

Formada em Comunição pela Faap e em Decoração na EPA. Já trabalhou com TV e fotografia. Hoje é florista de coração. Escreve no blogTransmutando. Pratica trekking e trampolim acrobático. Pode ser encontrada imersa em algum lugar com natureza e silêncio, ou em alguma pista de dança do circuito indie rock de SP.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Gente fina (Martha Medeiros)




Gente fina, é aquela que é tão especial, que a gente
nem percebe se é gorda, magra, velha, moça,
loira, morena, alta ou baixa.
Ela é gente fina, ou seja, está acima de
qualquer classificação.Todos a querem por perto.
Tem um astral leve, mas sabe aprofundar as questões, 
quando necessário.É simpática, mas não bobalhona.
É uma pessoa direita, mas não escravizada 
pelos certos e errados: sabe transgredir, sem agredir.
Gente fina é aquela que é generosa, mas não banana.
Te ajuda, mas permite que você cresça sozinho.
Gente fina diz mais sim do que não, e faz isso 
naturalmente, não é para agradar.
Gente fina se sente confortável em qualquer ambiente:
num boteco de beira de estrada
e num castelo no interior da Escócia.
Gente fina não julga ninguém - tem opinião, apenas.
"Um novo começo de era, com gente fina,
elegante e sincera".
O que mais se pode querer?
Gente fina, não esnoba, não humilha, não trapaceia, 
não compete e,como o próprio nome diz, não engrossa.
Não veio ao mundo pra colocar areia no projeto dos outros.
Ela não pesa, mesmo sendo gorda, e não é leviana, mesmo sendo magra.
Gente fina é que tinha que virar tendência.
Porque, colocando na balança, é quem faz toda a diferença.



Martha Medeiros

Fascínio e Admiração (Fabrício Carpinejar)




Quando começa o amor? Certamente quando o fascínio encontra a verdade de cada um. Aí, é pegar ou largar.

Amor não é fascínio, amor é depois do fascínio, amor é compreensão.

O fascínio ainda é arrebatamento, tudo agrada, tudo é elogiado porque é inédito.

Não queremos perder nossa companhia, é só o que interessa, então não mostramos nenhuma resistência. 
Não nos incomodamos. Desligamos o senso crítico.

Há também a liberdade de não ter futuro. Não nos enxergamos morando com a pessoa. 
Não nos enxergamos descascando os problemas e a rotina com a pessoa. Não nos enxergamos discutindo longas madrugadas com a pessoa. 

Não nos enxergamos defendendo os nossos pequenos hábitos, antes naturais e automáticos, diante do olhar espantado.

O fascínio não inclui projetos, é fruição.
O fascínio não envolve julgamento.

Fascínio é a lua de mel das virtudes.
É se deixar levar. É não pensar demais.

Fascínio é hipnose, transe, mergulho sem os pés medindo a temperatura e a fundura da água.

Todos começam fascinados e terminam decepcionados no relacionamento.

Surge a dúvida: Será que é ele? Será que é ela? A dúvida não é ruim, a dúvida é quando passamos a praticar a verdade.

O fascínio é o éden, já a sinceridade é a maçã mordida.

No fascínio, o certo e o errado não existem, apenas a vontade imperiosa de ficar junto.

É preciso cair para se vincular. É preciso questionar para confirmar.

A decepção é que desenvolve o amor.
A frustração é que amadurece o amor.

É quando percebemos que o outro não está nem na nossa cabeça, nem no nosso coração, e que temos que percorrer um longo caminho a cada manhã para conhecê-lo. Aquele que parecia tão nosso é um estranho: vem o medo, a angústia, a ansiedade que destroem a inteireza das palavras. É quando o outro mente, é quando o outro comete uma falha, é quando o outro é grosseiro, e então o fascínio desaparece, e somos reais de novo e temos que tomar uma decisão pesando pontos positivos e negativos.

E a escolha é perdoar os erros e, mais do que isso, entender os erros e considerá-los naturais. Perdoar os erros de quem nos acompanha como perdoamos os nossos próprios erros.

É concluir que ele ou ela não acerta sempre, mas acerta mais do que erra e vale a pena continuar.

Troca-se a invencibilidade pela fragilidade. Troca-se a projeção pela introspecção.

Da morte do fascínio (a inconsciência da paixão), nasce a admiração (a consciência do amor) – esta, sim, será pela vida afora.